Juan Carlos I é um rei, um Chefe de Estado, o chefe de uma dinastia,
da Casa Real espanhola e comandante-em-chefe do Exército. Mas,
sobretudo, é o líder do corpo social de um país com muita história.
Nenhum país pode funcionar sem um líder, se entendermos a função como
uma influência sobre a maioria. E ele há sido, indiscutivelmente, o lide
da Espanha durante 32 dos seus 70 anos, em uma nação pouco monárquica
apesar de ter sido quase sempre, e historicamente desde 1492, uma
monarquia unitária. E antes um conjunto de monarquias peninsulares de
todos tipos, sortes e destinos.
" O já longo reinado de Juan Carlos I está sendo uma das épocas de maior esplendor e progresso do país "
A Espanha, um país de vales e montanhas, é um local de muito difícil
gestão. Depois de um mais que turbulento século XIX e um século XX que
apontava para superá-lo para o pior, o já longo reinado de Juan Carlos I
está sendo uma das épocas de maior esplendor e progresso do país, só
equiparável ao governo de seu parente direto Carlos III no século XVIII.
E democrático ao estilo saxão ou escandinavo.
Em um momento em que, pela idade do rei e o tempo ocupando o trono,
começa-se a fazer balanços, e alguns na Espanha, desde a direita mais
conservadora e a esquerda mais extrema, aproveitam para questionar a
legitimidade da instituição, convém refletir sobre a necessidade, ou
não, de prescindir de uma liderança tão popular e garantidora para os
espanhóis. Nenhum monarca na história contemporânea da Espanha esteve
tão perto do povo.
Juan Carlos I demonstrou ser peça fundamental numa engrenagem
constitucional complexa, ainda que consensual, reformável e dificilmente
substituível agora por outra menos equilibrada e solidária. Agora por
agora, o rei é a garantia de liberdades públicas reais e não só formais,
da sobrevivência da Espanha como tal e em sua diversidade, da moderação
na vida pública, da defesa nacional na qualidade de vértice das Forças
Armadas e da política externa. Que líder em nossa história reuniu sequer
a metade destas qualidades todas?
O monarca segue sendo, apesar da sua idade e tempo no trono, o
garantidor também da própria instituição monárquica. Enquanto viva e
mantenha seu juízo são, não parece possível convulsão alguma no sistema,
apesar de ser o espanhol, todavia, um povo imprevisível. Nenhuma
plutocracia à espreita parece ter o que fazer quanto a isso. Tampouco há
a vista alguma figura política com suficiente estatura de estadista e
capacidade de agregação bastante para propor a sério, e ao destino, uma
mudança da monarquia à república na Espanha.
" Não são poucos, nem pouco ambiciosos, os políticos que estão esperando seu momento de ser presidente de uma nova república após a morte do rei "
Inclusive, se após Juan Carlos I se proclamasse a III República,
seria uma estupidez e uma torpeza política tentar apagar os sinais
visíveis de seu longo reinado, numa vã tentativa de retificar a história
"a posteriori". Isso porque não são poucos, nem pouco ambiciosos,
alguns políticos de certo perfil, de direita e de esquerda, que estão
esperando seu momento de ser presidente de uma nova república após a
morte do rei. Seus nomes estão nas mentes de todos e um deles é, até
hoje, sem vergonha, conselheiro de Estado em exercício.
Não nos enganemos: alguns deles já movem desde já as forças da mídia
desde fora da Espanha para que se produzam ataques, ainda que sutis, a
Juan Carlos na imprensa internacional, e isso não parece furto da
casualidade nem da conjuntura. Esses ataques respondem a interesses
alheios à opinião pública da Espanha e aos espanhóis. Seu objetivo
imediato é a erosão da figura do rei justamente num ponto de inflexão
causado por sua idade, seu estado de saúde e o estresse inerente da sua
alta responsabilidade.
Também estão surgindo livros e textos que desprestigiam o herdeiro de
Juan Carlos. E temos ouvido e visto programas de rádio e televisão
dentro da Espanha cujo objetivo não parece ser o de favorecer a
liderança do rei, chegando-se inclusive a pedir sua abdicação, como se
estivéssemos diante de um outro Fernando VII. Demasiadas coincidências
no tempo e demasiados impacientes esperando seu momento para,
eventualmente, ocuparem a Chefia do Estado.
Mas o futuro ainda não está escrito e Juan Carlos ainda traz consigo
poderosa força de inércia para que alguém tente parar a seco a
monarquia. Uma grande porcentagem dos espanhóis não conheceu outro
líder. Já outra grande parte sabe, agradecida, que ele está cumprindo
seu papel histórico com tato, discrição, grande diligência e muita
dignidade. E segue sendo, no momento, ínfima a minoria que está propondo
alternativas em vida ao próprio rei, o que deixa ainda mais difícil a
situação de um príncipe das Astúrias pouco entusiasmado com o cargo, mas
também tomado pelo dever dinástico ao alcançar 40 anos, casar e ser pai
duas vezes.
" O tempo do futuro Felipe VI não terá nada a ver com o de Juan Carlos I, embora a Espanha continue essencialmente a mesma "
O próprio rei sabe das dificuldades que seu herdeiro terá para
conservar o trono. Mas pior era sua situação ao ganhá-lo por consenso em
novembro de 1975. No fim, a questão será a mesma: demonstração de
utilidade e capacidade de liderança. E independência de grupos de
interesse no que será então uma democracia telemática, para qual o rei
carece de planos. O tempo do futuro Felipe VI não terá nada a ver com o
de Juan Carlos I, embora a Espanha continue essencialmente a mesma.
Por mesma me refiro à dificuldade de gestão do país. Quando seus
dirigentes não foram muito capazes de entender-la, fracassaram de
pronto. Hoje ninguém discute que a república é uma forma de governo mais
abrangente e moderna (se mais democrática, ainda estamos por ver), mas a
monarquia constitucional não deixa a dever na capacidade de gerar
bem-estar para o cidadão, do Pacífico ao Báltico. O que ainda está por
demonstrar é se a república resultará mais idônea para um país de tanta
complexidade e atormentada história como a Espanha.
Ficou demonstrado historicamente que só com fortes lideranças é
possível o progresso da Espanha com unidade na diversidade. Nossa
característica individualista não deixa muito lugar para decisões
colegiadas, condicionadas, compartilhadas ou vazias de conteúdo. A
moderação é, em nosso caso, uma condição e uma necessidade. E parece que
a pode sustentar melhor uma autoridade neutra de longa projeção no
tempo que outra submetida a revalidação periódica ou a interesses
partidaristas do momento.
Nossa transição política tem sido um modelo, mas só da perspectiva da
nossa história recente desde meados do século XIX. Apesar do pacto pela
não ruptura, tivemos episódios trágicos. Agora estão mais claros os
erros e acertos da fórmula, mas a monarquia não pode ser em nenhum caso o
bode expiatório de um "neo-franquismo" que resiste a sucumbir nas mãos
da História ou de uma Igreja dominada por uma corrente integralista
alheia ao Catolicismo espanhol.
A Juan Carlos I temos que julgar o que fez como rei desde 1976 e não o
que fizeram o que dele se utilizaram após a vitória da democracia sobre
o totalitarismo em 1945. Se a reforma política de 1978 encerra
necessárias rupturas, a sua foi a primeira como condição "sine qua non"
para legitimá-lo no começo de seu reinado e para mostrar estar à altura
do cargo após a tentativa de golpe militar de fevereiro de 1981. Por
suas mãos, a Espanha entrou na União Européia em 1986 depois de décadas
de tentativas vãs e recuperou os parâmetros democráticos perdidos em
1936 com a eclosão da Guerra Civil.
" Monarquia ou república é um debate em que se deve pesar a haveres e deveres de cada sistema de governo "
O agora tão admirado por todos Adolfo Suárez foi por Juan Carlos
escolhido, que lhe deu cobertura e deixou agir segundo a conveniência de
ambos. Mesmo a incomum duração da permanência de Felipe González no
Palácio de La Moncloa foi alheia à intenção do monarca de consolidar uma
democracia para todos. Só por isso o rei da Espanha merece, no seu
aniversário de 70 anos, a gratidão dos cidadãos por evitar a repetição
de episódios que, novamente, nos fizessem sentir envergonhados como
espanhóis perante o mundo.
Monarquia ou república é um debate em que se deve pesar a haveres e
deveres de cada sistema de governo segundo nossa própria experiência e a
do nosso entorno para vermos se vale à pena provar a mudança apenas
pela própria mudança. É uma questão de calcular o risco e pesar o preço
desta decisão se se quer apresentar essa possibilidade algum dia.
Em uma democracia consolidada, como a que nos deixa Juan Carlos I, é
até cabível propor prescindir justamente de quem a fez possível com sua
liderança. A soberania reside desde 1978 nos espanhóis porque o monarca
recusou ser cúmplice e vértice de uma ditadura institucional com
aparência de democracia no primeiro momento e depois renunciou poderes
civis executivos com a posterior Constituição. Essa é sua grandeza e seu
enorme mérito.
(*) Francisco Poveda é jornalista e professor universitário espanhol
(Publicado em 'O Globo', Brasil, 4 de Janeiro de 2008)
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